Duplex Felicitas

Há no homem um desejo natural de felicidade para a qual tende como a seu fim último. Porém, até que ponto podemos falar de uma felicidade perfeita e outra imperfeita? É o que trataremos agora, ancorados no pensamento de Santo Tomás.

duplex felicitas em Santo Tomás de Aquino

Partiremos do pressuposto de que alguns homens parecem ser mais bem-aventurados que outros. Aqui, porém, devemos apontar os dois sentidos referentes à Beatitude, a saber: do ponto de vista objetivo como sumo bem, ou o próprio Deus, como nos faz entender o Doutor Angélico; ou como contemplação e consecução do bem perfeito. Em relação ao primeiro, há que se considerar que os homens são bem-aventurados igualmente, pois “não há mais que um sumo bem, Deus”[1]. Entretanto, se considerarmos o segundo sentido, então poder-se-á afirmar positivamente o problema apresentado acima, uma vez que alguém pode “desfrutar mais deste bem”[2] que outro porque apresenta uma maior disposição.

Além disso, considere-se uma vez mais que a beatitude que o homem alcança nesta vida se dá por participação, já que a felicidade perfeita e verdadeira implica em que cesse toda e qualquer espécie de maldade; que todos os desejos estejam completamente satisfeitos; que não haja espaço para a ignorância e, sobretudo, porque a beatitude consiste na visio essentiae divinae cuja posse ultrapassa os limites da vida presente[3]. Isto não implica em que não possamos chamar de felicidade àquela que se dá de modo imperfeito nesta vida, pois esta se apresenta como um nível que, embora imperfeito, está orientado para aquela que na vida futura se dará perfeitamente, pois ocorrerá pela posse do bem perfeito e suficiente.

Há que se dizer, ainda, que em relação à felicidade imperfeita pode acontecer de alguém perdê-la pelo fato de que, neste mundo, se está sempre ante muitos bens que distraem o homem do estado contemplativo, além de ser possível também que “a vontade do homem pode transformar-se até passar da virtude, em cujo ato consiste fundamentalmente a felicidade, ao vício”[4]. Entretanto, em se referindo à beatitude perfeita que dar-se-á depois desta vida é impossível que se possa perdê-la uma vez alcançada, pois não pode acontecer que “quem vê a essência divina queira não vê-la”[5] dado o seu caráter de autossuficiência e completude da vontade, onde não fica espaço para se desejar mais nada.

Para o Doutor Angélico, somente a beatitude imperfeita pode ser alcançada pelos meios naturais de que o homem dispõe. Porém, quanto à beatitude perfeita que consiste na visio essentiae divinae “é superior não só à natureza do homem, senão também à de toda criatura”[6].

Assim, pois, dado os limites da inteligência humana, o homem precisa de algo que o ajude na elevação daquilo que se apresenta nele como a capacidade de ver a Deus, ou seja, de unir-se a Ele chegando à sua última plenitude. E, portanto, como isso não é possível pelos meios naturais de que dispõe, deve existir uma força sobrenatural que o ajude nesta elevação para contemplar a Deus. Assim, o homem conta com a ajuda e iniciativa de Deus mesmo, que através da sua graça elevadora lhe permite alcançar a última e perfeita beatitude sem que, para isso, modifique a sua natureza.

Dada essa distinção quanto aos “tipos” de beatitude, é possível que todos os homens a desejem? O próprio Aquinate responde, dizendo que:

Como o objetivo da vontade é o bem, o bem perfeito de alguém é o que sacia totalmente sua vontade. Por isso, desejar a beatitude não é outra coisa que desejar que se sacie a vontade. E isto o deseja qualquer um […]. Quanto aquilo no que consiste a beatitude nem todos a conhecem, porque não sabem a que coisa corresponde a razão comum de beatitude. E, por conseguinte, enquanto a isto, nem todos a desejam [tradução nossa] [7].

Deste modo, ainda que os homens não conheçam o conteúdo da felicidade, é inegável que a sua natureza se inclina para ela, pois busca satisfazer sua vontade nos bens que percebe no mundo material. No entanto, tendo sido feito para conhecer o universal, o homem permanece numa contínua insatisfação peregrinando entre os bens particulares em direção a um bem que seja absoluto, no qual consiga repousar completamente a sua vontade porque contém em si toda a perfeição.

Portanto, esta divisão da felicidade que podemos encontrar no pensamento filosófico de Tomás de Aquino nos permite pensar o termo último da vida humana em duas perspectivas, uma natural e outra sobrenatural[8], sendo que a felicidade natural se apresenta como uma disposição para a sobrenatural. Desta forma, Veiga sintetiza o que expomos acima ao destacar que “o fim último natural não é o que convém à natureza humana; há algo além e de maior importância do que aquilo que o homem pode alcançar pelo seu poder”[9] e que constitui o estado mais perfeito de sua vida no qual não há mais nada que desejar.

Sem. João Batista Santos
Diocese de Penedo
2º de Teologia, 2019

 

[1] S. Th., I-II, q.5, a.2, sol.

[2] S. Th., I-II, q.5, a.2, sol.

[3] Cf. STh., I-II, q.5, a.3, sol.

[4] STh., I-II, q.5, a.4, sol.

[5] STh., I-II, q.5, a.4, sol.

[6] STh., I-II, q.5, a.5, sol.

[7] STh., I-II, q.5, a.8, sol.

[8] Cf. VEIGA, Bernardo. A ética das virtudes segundo Tomás de Aquino. São Paulo: Ecclesiae, 2017. p. 38.

[9] Ibidem., p. 43.

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